PessoALL: Que bela se revelou esta discussão, afinal! Mais uma vez a lista mostrou que pode ser arena para discordâncias, concordâncias, e muito debate racional e inteligente. Os colegas apresentaram argumentos tão superiores aos argumentos iniciais que ousei propor que ao fim fico até tentado a concluir que Descartes estava afinal errado, e o bom senso NÃO é a coisa mais bem distribuída deste mundo. :-)
Felicíssimos me pareceram ter sido, em particular, Anderson com o seu PS esclarecedor e Daniel com sua inteligente Digressão Lúdica. Anderson lembrou muito bem lembrado do imenso esforço recente que custou à área de Computabilidade decidir-se pela maior adequação conceitual da terminologia "computavelmente enumerável" onde antes, por décadas, dominaram os termos "recursivamente enumerável", "semidecidível" ou "Turing-reconhecível". O custo de mudarmos os nossos hábitos lusófonos (orais, antes de mais nada) no que diz respeito à boa tradução de "Beweis" será claramente muito menor. Daniel mostrou ainda que "Teoria das Evidências" poderia se constituir em uma tradução até mais adequada ao que a "Proof Theory" _deveria ter sido_, para além do mero estudo da noção lógico-matemática de *demonstração*. Deu-me até vontade de propor a revisão da terminologia em todas as outras línguas, para manter a nossa terminologia atual. :-) Mas vou ficar mesmo com "Teoria das Demonstrações", que até agora me pareceu superior em termos de adequação conceitual e etimológica --- deixando claro que, como disseram os colegas, assim como a matemática não pode ser um substituto para a filosofia (Kripke), a escolha de uma *terminologia sã* não pode ser um bom substituto para o verdadeiro *esclarecimento conceitual* por ela pressuposto. Curiosamente, outro tema que foi recentemente citado nesta discussão e em outra que tivemos antes trouxe justamente à baila um termo que também tem estado atualmente em processo de transformação, na literatura, a saber: aquele que outrora foi amplamente conhecido como "Isomorfismo de Curry-Howard" e que hoje cada vez mais é conhecido como "Correspondência de Curry-Howard", para evitar uma possível imprecisão paradoxalmente ligada ao significado matemático preciso do termo "isomorfismo". Por motivos semelhantes, também houve esforços (menos bem-sucedidos) para rebatizar a famosa "Tese de Church-Turing" como "Conjectura de Church-Turing". Por outro lado, quase ninguém chamaria o "Último Teorema de Fermat" de "Última Conjectura de Fermat", embora pareça claro que uma _demonstração_ do teorema não havia realmente sido produzida pelo jurista que lhe deu o nome. (E na informática ninguém cogitou, obviamente, substituir o termo anedótico "Lei de Moore" por algo mais _adequado_.) Todas estas histórias testemunham vivamente o quanto as linguagens técnicas evoluem, em concurso com as linguagens naturais, e mostram como esta evolução pode ser parcialmente dirigida pelos usuários/utentes destas mesmas linguagens. Finalmente, no que diz respeito à proposta recente de criação de uma *Convenção Notacional da SBL*, ou de um *banco de terminologia* que "nos ajudasse a escrever melhor", confesso-me um pouco descrente da iniciativa --- e até temeroso. O bonito deste tipo de discussão que estamos tendo agora está justamente na _possibilidade_ que temos de propor a emenda, por exemplo, de termos técnicos que se revelem a médio prazo conceitualmente (ou etimologicamente) equivocados, tais como "consequência sintática" ou "teoria da prova". Ao decidirmos contudo por uma convenção particular "universalmente partilhada em nosso território", em detrimento de outras que possam ser _igualmente adequadas_, engessamos outra vez a língua, e passamos a correr o risco de falar de "erros" que, com mais tolerância, enxergaríamos justamente como propostas de _revisão da norma_. Será que precisamos de mais academias ditando regras? Parece-me mais saudável, ao contrário, conviver com a diversidade, desde que bem justificada! % % % Termino com uma anedota. Quando eu vivia em Viena, surpreendeu-me o comentário de um colega que afirmou que eu havia usado, em uma apresentação, uma "convenção terminológica totalmente divergente do padrão da literatura". O motivo da minha surpresa estava justamente no fato de que eu havia usado a exata terminologia que encontrei na literatura que eu li durante toda a minha formação, no Brasil, ou que em alguns casos ajudei a desenvolver cuidadosamente, terminologia esta que eu havia encontrado também em muitos artigos escritos por colegas de várias partes do mundo. Notei contudo que estes colegas de outras partes do mundo muitas vezes não deixavam de ser, por assim dizer, "simpáticos à literatura produzida no Brasil". E compreendi por fim que o que os colegas vienenses chamava de "padrão na literatura" consistia simplesmente no padrão da _literatura escrita por eles_ (aliás, por um grupo pequeno deles, já que eles não hesitaram também a me apontar um dentre eles que, detestavelmente, insistia em desenvolver suas próprias e irritantes convenções terminológicas --- e este parecia ser, a propósito, um dos principais objetivos da proposta de vida daquele pobre sujeito). Mas por que deveria haver um "padrão único", seguido por todos? (a única resposta razoável que me deram foi de que isso facilitaria a leitura *deles* --- e fiquei pensando no quanto seria bom se todos também decidissem escrever na minha própria língua, para facilitar a *minha* leitura...) Bom, esta era apenas mais uma faceta de um fenômeno muito natural que encontrei antes na Alemanha, na Bélgica, em Portugal, em diferentes ocasiões, e que por certo se encontrará n'outras partes: o fenômeno da criação de convenções terminológicas e notacionais ^locais^, acordadas por um grupo seleto e próximo de cientistas. Todas estas terminologias e notações foram construídas com a melhor das intenções, sem dúvida, com o intuito de facilitar a comunicação e a boa expressão dos conceitos subjacentes. Com poucas exceções, contudo, nenhuma delas me pareceu querer se *impor* a outras como "o padrão a ser seguido". E por que deveriam? ("Por que sim" não é uma boa resposta, logicamente...) % % % Joao Marcos Anderson Araújo escreveu: > > PS: Tanto quanto entendo esses debates terminológicos, do qual em geral não > participo, parece claro que são formas normativas de discussão. Não está em > questão a forma como esse ou aquele grupo de pessoas *se expressa*, isso é > uma questão empírica - motivada talvez pelo gosto -, mas sim como os mesmos > *devem se expressar*. Nesse contexto, deve-se apresentar razões. Dizer > coisas do tipo ``x ou y não fala assim'' ou ainda ``prefiro falar A em > detrimento de B'', ``Tanto faz usar a expressão K ou L'' etc não são > razões, são quando muito descrições de fatos. Vale lembrar a falácia > naturalista: em geral, do que é, não se segue o que deve ser. Portanto, se > um determinado grupo de pesquisadores se expressa de uma forma, isso não > faz diferença. Eles que mudem a forma de se expressar, caso estejam > equivocados, ou apresentem razões para tal prática linguística. Ciência não > é dança, onde cada qual se expressa segundo lhe convém. Daniel Durante escreveu: > > (3) Mas, apesar disso, devo admitir, "Teoria das Demonstrações" é não só > mais bonito que Teoria da Prova (ou da Evidência), como é mais próximo > do padrão das outras áreas (Teoria dos Conjuntos, Teoria dos Modelos, > Teoria dos Tipos,...). No entanto, do ponto de vista conceitual, a expressão > "Teoria das Provas" seria igualmente boa, talvez até mais pertinente, > embora soe a mim horrorosa :) > > [...] > > [PS] UMA DIGRESSÃO LÚDICA: usei de propósito a palavra semibreve > quando adjetivei meus comentários: "comentários semibreves". Talvez > você e a maioria dos colegas tenha entendido minha afirmação como: > "comentários um pouco mais longos do que o seriam se fossem > comentários breves". Quem entendeu assim, entendeu o que eu quis > comunicar. Mas a expressão que eu usei é ambígua. Semi indica > "a metade", ou "um tanto". Mas 'a metade' de 'breve' é MAIS breve > do que 'breve' ou é MENOS breve do que 'breve'? Eu não sei. Em música, > por exemplo, uma nota semibreve tem a metade da duração de uma nota > breve. Então, neste sentido musical, um comentário semibreve deveria ser > ainda mais rápido do que um comentário breve. Vocabulário, vocabulário,... _______________________________________________ Logica-l mailing list Logica-l@dimap.ufrn.br http://www.dimap.ufrn.br/cgi-bin/mailman/listinfo/logica-l